O homem e o ipê
No mundo em que vivemos atualmente, onde o que quer que imaginemos está disponível a distância de um clique, é curioso imaginar no motivo pelo qual alguém construiria suas próprias ferramentas?
Se você quer um formão, é só pegar um na árvore de formões. Fácil!
Apesar da grande oferta de tudo quanto é tipo de ferramentas no mercado, o fato é que ferramentas de qualidade custam caro. Muitas mais caras que ferramentas elétricas, inclusive.
A necessidade de uma plaina nova surgiu de um projeto para uma pessoa muito especial e no momento em que eu comecei a preparar um pedaço de ipê (eu acho) com minhas humildes plainas percebi que não seria possível preparar a madeira. Ao invés disso, era mais fácil a madeira preparar a lâmina da plaina tamanha era a dureza da madeira.
De qualquer forma, o fato é que se eu tivesse dinheiro suficiente, compraria uma bela plaina para trabalhar com esse tipo de madeira.
No entanto, há outros motivos para fabricar sua própria plaina ou outras ferramentas além da falta de dinheiro. E muito provavelmente, mais cedo ou mais tarde, há de se fabricar algum gabarito ou jig, que não deixa de ser uma ferramenta.
Um dos motivos para se construir sua própria plaina, é aprender como a ferramenta funciona mais profundamente; e outro motivo é que é divertido como construir qualquer coisa em marcenaria. O grande mestre James Krenov construía suas próprias plainas, as quais ficaram muito famosas. Basta pesquisar no YouTube “Plaina estilo Krenov” (Krenov style plane).
No meu caso, acho que se ajuntaram todos os motivos que eu citei para construir essa plaina. Mas para isso era necessário voltar ao básico e se perguntar: como funciona exatamente a plaina?
A princípio não há muito mistério no funcionamento da plaina: é uma lâmina guiada pela superfície da madeira. Essa lâmina remove pedaços finos da madeira que chamamos de cavacos (shavings em inglês) e assim a madeira vai tomando a forma desejada.
Seria fácil se toda madeira fosse igual. Mas há diferença até em madeiras da mesma espécie variando de árvore para árvore, o que dirá de madeiras de árvores diferentes.
Ah o ipê. Madeira bonita e resistente! Nobre e Lustrosa! Dura! Difícil! Selvagem! Malvada! Ah o ipê… uma relação instável.
Mas eu não podia desistir. Essa madeira não podia me vencer. Só que eu não tinha uma ferramenta apropriada até então e, além disso, não tinha dinheiro. Estava perdendo a batalha… mas pra começo de conversa, o qual era a ferramenta apropriada nesse caso?
De volta ao básico
Qual era a plaina apropriada nesse caso? Madeiras duras e exóticas tem mais propensão a lascar (tear out) ,podem ter fibras em direções improváveis dificultando em muito o trabalho. Da até vontade de lixar tudo com aquela super lixadeira orbital, mas resista à tentação, amigo! Há uma saída!
Esqueçamos um pouco o ângulo do gume da lâmina que vemos em tantos tutoriais pela internet e nos concentremos no ângulo de aproximação da lâmina.
Madeiras mais macias, podem ser trabalhadas com ângulos de aproximação menores pois sofrem com menos problemas de tear out e podem ser removidos cavacos de espessuras maiores.
Já as madeiras mais duras devem ser trabalhadas com ângulo de aproximação maior. Esse ângulo maior faz com que os cavacos de madeira sejam expulsos rapidamente pela lâmina pois devido a este ângulo, ela age como uma parede impedindo que os cavacos se transformem em lascas. A parte negativa do ângulo maior é que se tira pouco material.
Como regra geral, é utilizado um ângulo de 45º de aproximação e para maioria das madeiras é o que basta. Mas não para o Ipê. Ele, meu inimigo preferido, não iria se deixar vencer por uma lâmina convencional. Tem que honrar sua fama de madeira mais dura e pesada dos trópicos americanos (quiçá do universo!) Não é um mero 45º que vai domar essa madeira.
Optei então em fazer uma plaina de acabamento sem contraferro. Utilizando um ângulo de 60º na cama poderia facilmente se tornar uma plaina raspadeira (scraping plane) invertendo-se a lâmina e obtendo um ângulo de aproximação de 90º (se o gume da lâmina estiver afiado em 30º graus).
É claro que para isso eu teria que ter uma lâmina sobrando. Mas eu não tinha. E uma lâmina pode corresponder a 20% do valor da plaina.
Mas acho que não é possível fazer uma lâmina tão facilmente. Seria possível? Sim, é possível, amigos.
A mini forja
Não muito tempo atrás, se você precisasse de uma lâmina, iria na loja do seu amigo ferreiro, encomendaria uma e aguardaria até ficar pronta. Hoje você acessa o mercado livre e compra o aço da sua escolha. Mas tem um porém; o aço ainda não está pronto. Ele precisa passar pelo tratamento térmico.
Mal eu sei marcenaria e agora quer ser ferreiro…
Mas graças ao bom Deus existe uma coisa chamada livro. E os bons livros nos ensinam coisas úteis tendo como pré requisito saber ler.
Este livro se chama Making Wood Tools de John Wilson. Mais direto impossível e sinceramente, não me lembro como achei este livro; acho que foi em um podcast chamado Hand Tool Book Review, que inclusive recomendo bastante.
Como é de se esperar, fiz algumas adaptações como, por exemplo, a utilização da mini forja já que John Wilson usa um maçarico para aquecer o metal (que eu também não tenho). Também utilizei outro metal, pois o que ele escolheu era mais macio e no meu caso, trabalhando com uma madeira mais dura, seria interessante um metal que mantivesse a afiação por mais tempo.
Com a mini forja pronta e o metal já cortado no tamanho certo, era hora de adicionar o carvão e acender a churrasqueira; a diferença é que não era picanha (infelizmente) que eu iria assar. Adicionei a lâmina no meio do carvão e com meu sistema de ventilação ultra moderno, comecei a girar a manivela do soprador manual (que inclusive usarei nos próximos churrascos!).
Como saber que o aço está na temperatura certa? Os ferreiros miram na cor. Esse aço, por exemplo, tem uma temperatura de têmpera de 820ºC e meu amigo John Wilson tem uma tabela super útil em seu livro relacionando as cores com a temperatura.
Ao atingir a temperatura necessária na lâmina, temos que resfriá-la rapidamente mergulhando em (John aconselha) óleo vegetal, no meu caso óleo de soja de cozinha mesmo. Necessário alertar que devemos usar EPIs e fazer isso ao ar livre. Sem dúvida, se eu não estivesse usando uma luva de raspa, tinha me queimado já que o óleo se aquece muito rapidamente e pega fogo instantaneamente; e mais: se você utilizar um recipiente pequeno como eu, vai pegar fogo por um bom tempo.
Um tempo depois, a lâmina vai para o forno em uma temperatura mais baixa para ajustar a dureza e ficar mais dúctil. Essa etapa é conhecida como revenimento. Após o resfriamento natural, é só amolar e está pronto.
A plaina
Meu amigo John em seu livro, ensina a fabricar a plaina pelo processo de laminação, ou seja, as partes são cortadas e depois coladas. Existe também o processo de entalhe onde o resultado final é uma plaina construída com um único pedaço maciço de madeira.
A vantagem da construção em laminação é que se você errar, não estraga todo o trabalho. Mas para que o processo seja rápido, são necessárias ferramentas elétricas como uma serra-fita. Já a plaina talhada requer mais habilidade e algumas ferramentas específicas, mas em contrapartida, são plainas que sobrevivem muito mais tempo mesmo em condições adversas.
A madeira escolhida foi pequiá. A princípio pensei em fazer em um belo pedaço de cumarú, mas devido a baixa trababilidade desta madeira com ferramentas manuais, desisti. Teria que fazer uma plaina antes para trabalhar o cumarú entrando em um ciclo infinito (pleonasmo). Fiquei com pequiá mesmo que também é muito durável e muito mais fácil de trabalhar.
Uma plaina de madeira não pede um acabamento muito elaborado, apenas uma cera de abelha já é o suficiente. Ademais, além de útil, é ainda uma bela peça.
E o ipê? Bem, ele mostra sinais de cansaço após ter sido plainado diversas vezes e muito em breve, acredito, perderá essa batalha.